23 de out. de 2010
Fale, memória
por Zeca CamargoFoi um choque, claro. Não um choque como o de muitos universitários que, quando vou dar palestras em faculdades, descobrem chocados que eu um dia trabalhei lá (um "susto" natural, pois uma vez que eu deixei a emissora há 16 anos, um aluno médio de um curso superior não teria idade – sequer teria nascido – para ter assistido a um "MTV no Ar"). Foi um choque de verdade, que me deixou sem ação naquele começo de noite de sexta-feira (sempre um "bom" dia para demissões, não é mesmo?), e que teria deixado profundas sequelas se dois dos meus melhores amigos – na verdade, um amigo e uma amiga – não tivessem me dado um porre e me levado desacordado para uma casa de praia no litoral paulista. Para limpar a minha cabeça e segurar meu coração…
Até hoje não entendo bem o motivo da demissão, e a própria lembrança da cena é um tanto confusa. Um pequeno grupo comemorava na minha sala algumas coisas legais que tinham acontecido recentemente – lembro-me até de ter ido buscar uma champanhe em casa, no meio da tarde, para a ocasião. Entre elas, o sucesso de um "Top 50 - Verão", que havíamos gravado num enorme veleiro, e a gravidez de uma das VJs mais populares então do canal. O diretor entra na sala e, naquela cena clássica, diz que quer falar comigo em particular, mas, creio, ao ver a festa que estava rolando, diz que ia voltar mais tarde – como, de fato, voltou. E disse então que a MTV estava sendo reestruturada, e que no meu nível hierárquico – há menos de dois meses eu havia sido promovido de diretor de jornalismo a diretor de programação – só havia espaço para um "executivo". E a escolha da "direção", obviamente, não era eu, mas outra pessoa que, por ironia, deixou a própria MTV alguns meses depois e nem seguiu carreira em TV – nem na frente nem por trás das câmeras.
Descrevo essas memórias – o título do post de hoje é "surrupiado" de Nabokov, uma tradução minha para sua magistral autobiografia (parcial), "Speak, memory"- com a segurança que uma distância histórica de 16 anos me dá. Não as recordo com rancor, nem mesmo mágoa. Eu diria até que, se você parar para analisar o arco do meu trajeto profissional, essa demissão foi uma das melhores coisas que aconteceram comigo desde que comecei a ser jornalista… Mas fiz questão de registrar o episódio aqui, porque ele é um bom parâmetro do caos e da imprevisibilidade que sempre reinavam desde o começo da MTV. Que eram, diga-se, as melhores coisas que poderiam existir quando você precisa de um monte de gente jovem trabalhando junto e contando com a criatividade, mas é também uma situação extremamente perigosa quando você tem um negócio para tocar – ou, sendo mais específico, uma TV para colocar no ar.
Daquela conversa confusa no início de noite de uma sexta-feira, lembro-me de poucos detalhes. A explicação para a demissão, por exemplo, certamente foi mais elaborada do que a frase sobre "reestruturação" que escrevi há pouco. Mas minha memória tem bem guardada o final da conversa com meu diretor. Eu disse: "Bom, se eu entendi direito, vocês estão demitindo o diretor de programação, mas quem vai apresentar o 'MTV no Ar' na segunda-feira?". E a resposta foi tipicamente MTV: "É mesmo… Ainda não pensamos nisso…".
É assim que a gente trabalhava lá: resolvendo as coisas na última hora, contando com inspirações que "caíam do céu", e nos permitindo fazer (quase) tudo. E, mais, importante de tudo, nos divertindo horrores.
Já vou fazer uma listinha aqui de 5 momentos favoritos dessa passagem por lá, mas antes quero explicar melhor essa minha posição que acabei de colocar – que de superficial não tem nada. E quero começar contando uma conversa rápida que tive com o Didi Effe, na última quarta-feira (20/10), na ótima festa que a MTV deu no Rio para comemorar seus 20 anos (onde a foto que ilustra o post de hoje foi tirada). Depois de fazer um entrevista rápida com ele, que estava dividindo com a Marina Person e o Cazé as entradas da transmissão da noite ao vivo, ele me disse que tinha gostado bastante do meu post anterior, a 1ª parte dessa minha "comemoração" do aniversário da MTV do B. Só não gostou mais, segundo ele, porque a certa altura, segundo ele, eu não teria resistido e dado uma "alfinetada" no canal… E aí a conversa tomou um rumo surpreendente.
Eu achei que ele estava falando do momento no texto onde eu comento que os monitores de TV da recepção da MTV mostravam propaganda política, e não música – erro que, "no meu tempo", seria imperdoável: a entrada da emissora é o seu cartão de visitas, não dá para chegar lá e assistir vídeos de candidatos disputando uma eleição… (minha sugestão foi a de que eles colocassem um material pré-gravado só com melhores momentos da sua programação, claro!). Mas a "alfinetada" à qual Didi se referia era outra – algo que, no meu entender não coloquei com maldade, mas sim como um questionamento quase filosófico: será que as pessoas hoje ainda querem sua MTV, como a campanha de lançamento do canal martelava há 20 anos?
O que argumentei com Didi então foi que essa minha "preocupação" não era negativa, mas apenas pertinente. 20 anos depois, e, como já disse, num mundo de informação pulverizada, videoclipe é algo que você vê no seu telefone celular – entre tantas outras opções -, questionar o que as pessoas querem da "sua" MTV deveria ser a preocupação maior de quem está tocando o canal. E não quero dizer com isso apenas seus diretores, mas também, os VJs, produtores e jornalistas envolvidos no processo.
Hoje, claro, assisto à MTV de longe, como uma das centenas de referências de cultura pop que coleciono. E, sem querer ofender os fãs de música, não acho que ela está tão fora dos trilhos assim. Por exemplo, muitas pessoas reclamam que a MTV não passa mais tanta música como antigamente, mas, sinceramente, eu desafio essas mesmas pessoas que martelam esse refrão a ficar na frente de uma TV por meia hora que seja vendo uma seleção de vídeos que duram, em média, 4 minutos cada. Aliás, eu desafio esses que reclamam a assistir um vídeo na totalidade de seus 4 minutos, sentando no sofá de sua casa… Pela 4ª vez! Percebeu a contradição?
Certa está a MTV de não dar ouvidos a essas reclamações e procurar novos caminhos. A "crise de identidade", se podemos chamar assim, não é exclusividade do canal brasileiro. A MTV americana passa pela mesma dificuldade – e, se a aposta que mais deu certo aqui foi a do humor (viva Marcelo Adnet e Dani Calabresa!), lá nos Estados Unidos todas as fichas foram para o formato de "reality", com sucessos notórios como "Jersey Shore", por exemplo. No mesmo espírito que reinava "no meu tempo", de caos e imprevisibilidade, creio que a MTV brasileira vai achando seu jeito de ainda se conectar com os jovens – e, admito, com as outras mídias, que nunca deixaram de olhar para o canal como fonte de inspiração. É "tentativa e erro", mesmo, e só vejo risco de que isso se torne uma estratégia preocupante se começar a haver um distanciamento do que é o DNA da própria emissora: a música.
Ela não precisa, porém, estar presente sob o formato de videoclipes. Mas ela tem que estar "no sangue" de tudo que a MTV fizer – a começar pelos monitores na sua recepção… Será que quem está lá hoje está… "respirando" música – como "no meu tempo"? Essa é a pergunta capciosa que me parece a mais difícil de fazer…
Na visita que fiz semana passada ao "velho" prédio da Alfonso Bovero, em São Paulo, enquanto esperava o estúdio onde gravaria uma entrevista com Cazé (para o "Notícias", que foi ao ar ontem [22/10]), pedi que me mostrassem onde era o jornalismo hoje em dia – um exercício de atrevimento nostálgico… Quando cheguei lá no 6º andar, onde a equipe do "Notícias" trabalha, custei a acreditar que ali funcionava uma redação. Vazia, o espaço me lembrava mais uma sala de operadores de telemarketing: quase nada nas paredes (cartazes de bandas e artistas, nem pensar), baias com computadores em mesas ultra "clean", e um silêncio de assustar – tudo bem que eram umas 9h da noite, mas eles ainda tinham um programa para ser gravado (comigo), e… onde estava o movimento, onde estava a excitação, onde estavam as pessoas "babando" para entrevistar as dezenas de bandas interessantes que estão passando pelo Brasil neste final de ano?
(Num contraste cruel com a MTV do início dos anos 90, um quadro lotado na sala de relações artísticas listava todos esses show que estavam por vir – se fosse "no meu tempo" a gente teria no máximo uns 2 ou 3 nomes ali para "brincar"… Esse pessoal agora tem de Paul McCartney a Of Montreal para se divertir e… onde está a diversão? Como costumava dizer uma colega "das antigas" que ainda é referência para a MTV brasileira – ela o fazia, claro, citando Madonna – "GET INTO THE F***ING GROOVE FOLKS!".
De lá desci para o estúdio e a conversa para o "Notícias" aconteceu logo em seguida. Foi o máximo. Em parte por eu ser um mega admirador do Cazé, mas também por eu estar de volta lá depois de tanto tempo. Como num filme – e eu sempre quis usar essa expressão-clichê… consegui! -, as lembranças vieram rapidamente num flash. Foram muitos momentos inesquecíveis – citamos vários na entrevista -, mas se tiver que fechar em apenas 5 deles, aqui vai uma lista rápida:
1) Cobertura do "Rock in Rio 2" – serei breve. Se já trabalhávamos 18 horas por dia naquele começo de MTV, o sono então foi dispensado por completo durante aquela enlouquecida cobertura de 9 dias. Entrevistas às 4h da manhã, reunião de produção às 8h, saltos de asa delta com bandas e horas sob o sol esperando uma frase de uma mega artista – e muito mais… Mas quem disse que eu estou reclamando?
2) Entrevista com Michael Stipe, "VMA" de 1991 – o "VMB" não era sequer um sonho. Assim, o ponto alto da nossa cobertura jornalística era esperar para falar com todos os artistas na premiação da MTV americana. Com quase 1 ano no ar, eu já deveria estar acostumado ao contato com celebridades, mas aí eu encontrei um dos meus maiores ídolos e… foi um desastre. Aliás, instrutivo. Eu estava conversando com Stipe, o líder do R.E.M. – na época, "bombando" com o disco "Out of time" (que, entre outros sucessos, trazia "Losing My Religion"), quando literalmente "viajei". Como conto no meu livro "De a-ha a U2", comecei a pensar em outras coisas… Desencanei da entrevista enquanto Stipe dava uma resposta longa, e dizia a mim mesmo: "Nossa, não acredito que estou entrevistando esse cara…". Ele, óbvio, percebeu – e encerrou a entrevista ali na hora. A grande lição? Primeiro o trabalho, depois a tietagem… Anos depois, no "Rock in Rio 3", quando tive a oportunidade de estar com a banda de novo, contei essa história a Michael Stipe – que, como eu esperava, não se lembrava do incidente, mas disse que era bem possível que ele tivesse feito isso…
3) Chegada do clipe de "Black or White", de Michael Jackson, novembro de 1991 –difícil alguém imaginar hoje que o lançamento de um videoclipe pudesse estar envolto em tanto mistério… Pois este estava. Michael Jackson, em 1991 – "tá ligado"? Estávamos todos reunidos na sala do jornalismo, produtores, diretores e VJs, para assistir à fita que havia acabado de chegar dos Estados Unidos – ultra confidencial! Um silêncio absurdo até aquele início com Macaulay Culkin – e depois um festival de comentários espontâneos. Ali, reunidos diante de uma mesma inspiração, uma garotada que vibrava com música, sintonizada na mesma expectativa. Revimos o clipe umas 10 vezes seguidas – e eu só ficava pensando: "esse é o lugar mais legal do mundo onde eu poderia estar trabalhando"… "One nation under a groove" – eu divagava (está vendo… não é de hoje…).
4) Entrevista com Kurt Cobain, "Hollywood Rock", 1993 – também contada em detalhes no meu já citado livro, não foi um evento simples. Essa mesma entrevista que você pode ver acima, aconteceu de madrugada, várias horas depois do previsto, no Rio de Janeiro, depois de a gente ter chegado lá, esperado ele terminar uma sessão no estúdio com a banda de sua hoje viúva (Hole), esperado ele cochilar ("Kurt está dormindo", nos vociferava Courtney Love, "e ninguém fala com ele enquanto Kurt não acordar, ninguém acorda Kurt!"), esperado ele acordar, e esperado ele se compor… Depois de tudo isso, porém, eu tive diante de mim o artista mais doce e genial que eu jamais entrevistei.
5) Entrevista com Renato Russo, 1993 – mais um capítulo do livro (e isso não é um esforço de "merchan", juro!). Passamos um dia na casa do Renato – que começou com ele nos recebendo no seu quarto, embaixo de lençóis, dizendo que nós tínhamos errado o dia do encontro e que ele queria dormir… Uma brincadeira dele, claro, que em seguida levantou-se já vestido da cama e deu o depoimento mais transparente que eu já testemunhei de um artista. Revendo o programa – coisa que não fiz quando escrevi "De a-ha a U2", de propósito -, fiquei ainda mais encantado com a honestidade e a candura de Renato. Um raro momento para me orgulhar – e não ter vergonha de declarar esse orgulho. Ídolo não é ídolo à toa… e ali estava o atestado de Renato Russo de que ele veio para inspirar não só a minha, como muitas gerações.
O resto são memórias soltas, tantas boas, outras nem tanto, que eu revirava naquele fim-de-semana da demissão com certa angústia, e que hoje revisito com enorme prazer. E com a certeza de que sempre vai ter gente para levar aquilo tudo, aquela idéia, essa "coisa de MTV" adiante. Desde de que seja com música – porque sem música, francamente, não dá.
Ela tem que estar lá, não necessariamente como clipe – já disse – mas em qualquer formato: humorístico, auditório, cerimônia de premiação, telejornal interativo, festa, parada de sucessos, acústicos, documentários de bastidores, shows na praia, biografias, reportagens de comportamento, ou simplesmente na singela imagem de um "mané" quase colado numa parede azul (ou verde) de "chroma key", mexendo os braços sem direção enquanto um fundo eletrônico rola lá atrás, falando de um artista que ele ou ela realmente gosta. Porque foi assim que tudo começou…
0 comentários:
Postar um comentário