20 de out. de 2010

Quando as pessoas queriam sua MTV

por Zeca Camargo



Dez entre dez VJs daquele primeiro time da MTV brasileira – éramos dez? –, se perguntados qual a música que os faz lembrar do começo da MTV vão responder "Garota de Ipanema", naquela regravação "ultra cool" de Marina, ou "Groove Is In The Heart", do Dee-lite – os primeiros clipes de música brasileira e internacional que foram ao ar naquele longínquo 20 de outubro de 1990.

Para mim, porém, a música que marcou minha entrada nesse universo fascinante – dentro do qual eu me diverti (e muito) durante mais de 3 anos, enquanto fazia todo meu aprendizado num veículo onde eu ainda não tinha nenhuma experiência (justamente a TV) –, enfim, a música que me fez sentir que eu estava mesmo trabalhando na MTV foi outra: "Come Together", do Primal Scream.

Eu estava em Londres, na sala de espera do que era conhecida como MTV UK – a MTV do Reino Unido. Apenas algumas semanas antes de a nossa MTV estrear, fui até lá fazer um estágio no Departamento de Jornalismo – que era exatamente o que eu ia cuidar por aqui (o primeiro convite que recebi foi para ser diretor do jornalismo, e a parte da apresentação do jornal foi uma consequência disso).

As pessoas da MTV americana, que estavam no Brasil ajudando a colocar a emissora de pé, acharam que seria melhor eu acompanhar a estrutura de reportagem da MTV inglesa, pois, pelo tamanho pequeno, ela tinha mais a ver com o departamento que estávamos montando – a MTV dos EUA, aparentemente, era grande demais para nos inspirar… Não que eu estivesse achando ruim: para Londres, eu vou por qualquer motivo, pode chamar!

Ali então estava eu, esperando para uma primeira reunião com o pessoal do "News", quando no monitor pregado na parede começa a rolar o clipe de "Come Together". Eu já sabia o que significava uma epifania, mas nunca havia experimentado uma – foi ali, naquele momento, que eu senti que estava passando para uma outra fase da minha vida. Eu estava entrando de cabeça num território totalmente desconhecido (o da televisão) para trabalhar com um assunto que eu dominava – e, penso, domino até hoje – com orgulho: a música pop. No que isso iria dar? Era o que eu iria descobrir nos anos seguintes…



E que anos…

A música a qual "assisti" – naquela época ainda causava certa estranheza falar que a gente "assistia" a uma música –, antes de embarcar numa agitada semana de acompanhamento de gravações com bandas inglesas e horas dentro dos estúdios na Mandela Street sem fazer nada, anunciava o clima perfeito para o que estava prestes a acontecer comigo e com todas as pessoas que estavam naquela "viagem": todo mundo seguindo junto, indo junto. Ou, se você preferir, numa tradução alternativa para "Come Together", todo mundo gozando junto. E, de fato, esse foi o clima daquele princípio de MTV.

Como qualquer biografia universitária do canal informa, nossas primeiras instalações eram mais que improvisadas. Em uma casa semi-abandonada no bairro paulistano de Pinheiros, amontoávamos mesas em salas apertadas, nos esbarrávamos com atrevimento pelos corredores estreitos, e gravávamos os programas em um galpão cuja cobertura – de uma frágil telha ondulada – impedia que fizéssemos qualquer coisa por lá quando estava chovendo (o barulho dos pingos batendo era tão forte que o áudio ficava totalmente prejudicado). Fora as goteiras…

No entanto, foi nesse mesmo galpão que saíram as primeiras "cabeças" de VJ, que eternizariam para sempre a coreografia de braços "tipo ventilador", que tornou-se marca registrada do nascimento do canal. E foi lá também que torturamos sob um calor insuportável alguns dos maiores nomes da música pop daquela época (de Titãs a Engenheiros do Hawaii), com entrevistas longuíssimas que usaríamos ao longo de várias matérias nos primeiros meses do "MTV no Ar" – o programa que eu dirigia e apresentava. Mas acho que estou me adiantando…

Antes de sequer gravarmos essas entrevistas – mais uma dica do pessoal da MTV americana, para que tivéssemos "gaveta", ou seja, material para colocar no ar quando faltasse algum assunto – tínhamos de montar uma estrutura de jornalismo para garantir que teríamos um boletim diário no ar, com assuntos que interessassem àquele público que nos esperava como uma "salvação purificadora". Resumindo: eles queriam música – e reportagens sobre música. E era isso que tínhamos que apresentar, de uma maneira nova, ousada, diferente, e, se possível, provocadora.

Montei minha equipe da maneira como faço até hoje: intuitivamente. De cara, criei uma cumplicidade instantânea com uma pessoa que já tinha alguma experiência em TV (o que era uma raridade entre nós) – e que até hoje trabalha com isso em várias partes do mundo: Jacqueline Cantore. Com ela, juntei uma pequena trupe enlouquecida que nem ligava para nosso alerta de que, nesse período inicial, trabalharíamos uma média de 18 horas por dia – e isso não é um erro de digitação.

Nesse primeiro time, entrou um monte de gente boa, desde um ótimo repórter que só foi contratado porque, apesar de não entender muito de música, falava russo com fluência – era a época da "perestroika", que estava reapresentando a Rússia para o mundo (resumindo bem um processo político bem maior), e achamos que ele seria útil por isso – até a própria Cris Lobo, que hoje é diretora da própria MTV. E mais Lorena Calábria, Cris Couto, Renata Netto… Uma equipe que só foi crescendo ao longo dos anos: Chris Nicklas, Marina Person, Márcio Garcia, Rita Lobo, e mesmo o Zico Góes, que foi diretor durante um bom período – um grupo bem heterogêneo, é verdade, mas todo mundo com o mesmo espírito semi anárquico. E foi assim que estreamos.

A promessa de trabalhar pelo menos 18 horas por dia foi cumprida à risca. Não tínhamos opção. Ocupando um espaço ainda relativamente pequeno na programação, não tínhamos prioridade em nada: nem nos horários de estúdio nem nos equipamentos de edição. Mas como tínhamos a certeza de que queríamos colocar algo estupendo no ar – sem falsa modéstia, por favor… –, a saída era trabalhar em horários alternativos (leia-se, madrugada). E gravar horas de material. E editar tudo. E fazer as cabeças. E o espelho do programa. E ainda, no meu caso específico, aparecer diante das câmeras. O que era, então, um pequeno obstáculo a ser vencido.

Eu costumo brincar que se o piloto que gravei antes da estréia, para apresentar o "MTV no Ar" a grupos de pesquisa e anunciantes, caísse hoje no YouTube, talvez minha carreira televisiva pudesse ser colocada em cheque… Ou isso, ou as pessoas iriam começar a acreditar em milagres… Seria possível alguém com tão pouca intimidade com a câmera perseverar e crescer numa profissão que depende dessa desenvoltura? Bem, sou talvez uma boa prova viva de que sim… De qualquer maneira, esse piloto está perdido – isto é, eu tenho uma cópia em VHS lá em casa, e só eu sei o segredo do cofre… É coisa do passado…

O que importava naquele princípio de MTV, porém, era muito mais o que a gente estava mostrando do que a nossa performance individual. Todo mundo queria a sua MTV. A campanha de lançamento, escorada na do canal americano, pediu aos maiores artistas da música na época que gravassem a frase "Eu quero minha MTV" (Caetano Veloso notoriamente dispensou o sotaque inglês para pronunciar "Eme-tê-vê"). Foi um sucesso. Além disso, a MTV chegava já ajudada pela extrema boa vontade das pessoas – dos jovens, sobretudo –, que mal podiam esperar para começar a ver aqueles clipes. Não que isso fosse tarefa simples. Em São Paulo, ela só era disponível na (até hoje) obscura tecnologia do UHF – TV a cabo ainda era um projeto. Os cariocas, no entanto, levaram a melhor: durante seu primeiro ano, a MTV no Rio era transmitida, depois do meio-dia, num canal aberto – o que foi fundamental para que a gente fizesse o barulho necessário.

Necessário para quê? Para marcar presença. Éramos pequenos, mas queríamos chamar atenção. Chegávamos com a obrigação de surpreender e, para isso, abusávamos da liberdade criativa. Começava pelos videoclipes – até então, algo que no Brasil só existia oficialmente (veja que ironia) no "Fantástico". Como você pode comprovar numa pesquisa rápida aqui mesmo na internet, eles eram superproduções – experimente dar uma busca em "Casanova", de Ritchie, ou mesmo "Os Alquimistas Estão Chegando", de Jorge Benjor para entender o que estou dizendo (e dê um desconto histórico antes de criticar a estética da época…) –, e quem as bancava era o próprio "Fantástico". As gravadoras nem se preocupavam com isso, e mesmo naquele início da MTV, elas quando muito coproduziam os clipes com o canal. Foi só depois dessa "fase de transição" que elas assumiram a responsabilidade (e os custos) de "vender" seus artistas também visualmente – e a criatividade do formato explodiu.

Nós ali no jornalismo também tínhamos que inventar. Não só no formato, mas na própria pauta. Claro que era legal contar com o material que chegava da MTV americana – entrevistas exclusivas com artistas que nunca haviam falado para o público brasileiro –, bem como com a força de nomes nacionais do calibre de Kid Abelha, Lulu Santos, Titãs, Engenheiros, Capital Inicial, Legião Urbana, Marina Lima, Rita Lee e tantos outros, sempre ultra disponíveis para aparecerem no nosso jornal. Mas depois que você colocava a terceira entrevista com algum deles no ar… o que viria? Como continuar surpreendendo?

Um lado bom de trabalhar com música pop é que ela sempre se renova (eu sei, eu sei, os mais engraçadinhos vão dizer que, pelos nomes que citei acima – e que continuamos celebrando até hoje – nosso cenário musical não mudou muito… mas isso é outra discussão, que não cabe aqui). Mesmo assim, para um jornal diário, ainda faltava assunto – e nossa saída foi partir para o comportamento. Com a brecha que a MTV abriu junto ao público adolescente, percebemos que ali havia uma oportunidade: colocar esses jovens, que geralmente só apareciam na mídia sob o ponto de vista de pais e professores, falando exatamente o que pensavam, sem filtros. E tomamos uma decisão: o microfone iria para a mão deles!

Olhando para trás, isso não parece nada demais. Especialmente para a geração (ou as gerações) que já cresceu (cresceram) com a MTV, aqueles acostumados a ver o microfone na mãos desse público (deles mesmos), o que estou contando aqui parece uma bobagem. Mas, acredite, foi uma pequena revolução.

E era nessa frequência que trabalhávamos como uns loucos. Batendo muita cabeça – dentro e fora da MTV. Tivemos, veja só, "brigas" homéricas com o programa que apresento hoje pelo privilégio de estrear um clipe – a mais notória delas talvez, foi no caso de "Erotica", de Madonna, que terminou em empate, com MTV e "Fantástico" passando o clipe quase ao mesmo tempo (Reconheço que a própria noção de que uma estreia de um vídeo musical, algo que hoje você pode ver no seu telefone celular, na hora que quiser, provocasse disputas apaixonadas parece surreal, mas esses eram os tempos…). E por vezes, lá dentro mesmo, tínhamos nossas diferenças, por exemplo, na hora de decidir que programas este ou aquele artista deveria fazer primeiro. Mas quem se lembra dessas coisas ruins? A memória é sempre seletiva, e eu escolho hoje ficar com o que aquela farra toda tinha de bom.

Ainda outro dia, conversando com o Jorjão e a Cris – dois colegas que são meus amigos até hoje (e que, por uma grande coincidência, agora estão novamente juntos em um programa da mesma emissora em que eu trabalho) – nos lembramos que a Redação do Jornalismo era um dos cantos mais animados da MTV: eu costumava chegar mais cedo que todo mundo, e já programar a trilha sonora que daria o tom para o dia. Nunca, diga-se, tocada em volume baixo. Dançar era opcional, mas quem resistia?

Esse clima, que já era meio caótico naquelas instalações em Pinheiros, ganhou ainda mais espaço quando nos mudamos para o edifício na Alfonso Bovero – onde a MTV funciona até hoje. Por isso, não foi sem uma certa estranheza que adentrei aquele prédio mais de 15 anos depois de ter deixado a "music television"

Fui lá semana passada, dar uma entrevista ao "Notícias MTV", hoje ancorado pelo Cazé – um dos últimos VJs que vi entrar lá antes de eu sair. Fazia um frio incomum em São Paulo na última terça-feira (12/10) – e nos minutos que esperava para subir ao estúdio (ironias das ironias: eu aguardava uma autorização para entrar por aquelas catracas…), enquanto os monitores da recepção transmitiam "Horário Eleitoral Gratuito" (seria demais programar 20 minutos de música por dia apenas para exibição interna, para não fugir muito do "espírito da coisa"?), cruzou-me pela cabeça uma música que era um clássico alternativo de quase 10 anos antes de a MTV chegar ao Brasil: "Ghost Town", The Specials – fácil, fácil de achar aqui.

Logo fui liberado, e fiz uma entrevista deliciosa com o Cazé – que deve ir ao ar nesta sexta-feira (22/10). Lembramos, nos brevíssimos 15 minutos de conversa, bons momentos da minha passagem por lá, que é exatamente o que quero fazer na quinta-feira (21/10), na segunda parte dessas memórias "mtvilescas". Mas foi tudo muito rápido. Depois da gravação, lá embaixo, novamente na recepção, uma outra inquietação já me dominava. Enquanto o próprio Cazé se despedia correndo, o Zé Antônio (que é da equipe do "Notícias") fazia um carinhoso "link" entre o trabalho que eu tinha feito por lá e o que ele faz hoje, e eu me perguntava se as pessoas ainda querem sua MTV… Na calçada, como se para me distrair (ou cutucar), um vento gelado vinha do parque logo do outro lado da rua, trazendo um som que parecia cantar o arrepiante coro fantasmagórico do tal sucesso de 1981 dos Specials – aquele, que vinha logo depois de versos como esses:

"Bands won’t play no more
too much fighting on the dance floor…"

  • Veja um vídeo com o 1º dia da MTV Brasil:

Artigos Relacionados

0 comentários: